Inicio

Liberdade após escravidão: vítima fala sobre futuro depois da condenação de réus em Patos de Minas

Entre outros crimes, casal e filhas da família Rigueira foram condenados por submeter Madalena Gordiano a trabalho análogo à escravidão. A pena estimada ultrapassa os 14 anos de prisão

, em Uberlândia

25/06/2024 ÀS 23H30

- Atualizado Há 1 semana atrás

Não é nem metade do tempo que Madalena Gordiano viveu em situação análoga à escravidão, mas, ainda assim, os 14 anos de pena da condenação à família Rigueira são para ela motivo de alívio e comemoração: “A justiça está sendo feita”, comentou Madalena.

Família Rigueira é condenada por trabalho análogo à escravidão
Madalena Gordiano comemora sentença histórica de família Rigueira por trabalho análogo à escravidão – Foto: Juliana Leal

A pena, considerada histórica, é a soma dos crimes de exploração de trabalho análogo à escravidão, fraude processual e violência doméstica. O processo leva em consideração os 15 anos que Madalena viveu e trabalhou na casa de Dalton Milagres Rigueira, Valdirene Milagres Rigueira, Raíssa Lopes Fialho Rigueira e Bianca Lopes Rigueira Nasser. 

A Justiça acatou o pedido da defesa para que o processo corresse sob sigilo, por isso, detalhes sobre a condenação não foram divulgados. Enquanto os advogados dos réus já recorreram da sentença, a equipe jurídica de Madalena solicitou a queda do sigilo, alegando que a omissão das informações favorece apenas os acusados.

A família Rigueira, que nunca chegou a ser presa, vai aguardar pela conclusão do processo em liberdade.

Passado de escravidão

No dia 27 de novembro de 2020, auditores fiscais do trabalho e agentes da Polícia Federal resgataram Madalena do apartamento da família Rigueira, no centro de Patos de Minas. Imagens feitas pela equipe mostraram o quarto pequeno que a empregada doméstica vivia, sem janela, apenas com uma cama e um guarda-roupas.

Madalena no quarto pequeno e sem ventilação que vivia na casa da família Rigueira
Madalena Gordiano foi resgatada da casa da família Rigueira em 2020, pelo MPT e PF – Imagem: reprodução/MPT

Agora, em 2024, já são quase 4 anos vivendo a vida apenas segundo suas próprias vontades. Em sua primeira entrevista cedida após o anúncio da condenação da família que a submeteu a situação análoga à escravidão, Madá, como é carinhosamente chamada pelos íntimos, contou ao Portal Paranaíba Mais, que por muito tempo seu acesso ao mundo era totalmente limitado: “‘Não vai ali, não faz isso, não pode ir ali’ eu não gostava disso, não. Eu gostava de ser ‘libertada’, do jeito que eu tô agora”.

Aos oito anos, acompanhada da mãe, Madalena bateu na porta da residência de Maria das Graças Milagres Rigueira, para pedir pão para matar a fome. A mulher ofereceu mais que comida, mas também moradia e estudos, em troca da adoção irregular da criança. As promessas nunca se realizaram, e Madalena se tornou uma empregada doméstica da casa, onde ficou até 2005, quando foi dada à família de Dalton, filho de Maria das Graças.

Desmembramento dos processos

Madalena, como apontou a investigação do Ministério Público do Trabalho, nunca teve registro em carteira, não recebia salário, férias ou descanso semanal remunerado pelos serviços prestados ao longo de 38 anos.

Diante de um caso tão complexo, o processo se desmembrou em três partes:

  • Trabalhista: julgou o desrespeito às leis trabalhistas ao longo de 15 anos, período que Madalena ficou na casa de Dalton. Foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que concedeu indenização à Madalena por todos direitos trabalhistas que ela nunca teve.
  • Renegociação das dívidas: a família é acusada de ter feito empréstimos e gastos em nome de Madalena. Os advogados da vítima fizeram acordos e negociações com os bancos e instituições, junto com o Ministério Público Estadual, conseguindo reverter alguns contratos e recuperar cerca de R$ 50 mil em valores de empréstimos.
  • Penal: é a etapa atual, que foca nos crimes supostamente cometidos pela família Rigueira contra Madalena, sendo o principal deles o trabalho análogo à escravidão.

Alexander da Silva Santos, advogado de Madalena, explica que apenas os últimos 15 anos foram levados em conta. “O processo se refere ao período que Madalena esteve com Dalton, de 2005 para cá. No período anterior, quando Madalena estava com os pais de Dalton, existe uma dificuldade um pouco maior porque o acervo probatório é mais difícil de recuperar, como documentos, locais e testemunhas.”

A escravidão invisível

“Qualquer lugar que eu vou eu tenho amigos. Na rua, nos supermercados, nos restaurantes. Não tem lugar que eu não tenha amigos”, com um sorriso largo no rosto, Madalena conta sobre a frequência que é notada nas ruas desde que o caso dela ganhou repercussão nacional.

E foi a mínima interação que tinha com vizinhos do prédio da Família Rigueira que a salvou. Os vários bilhetes pedindo dinheiro para comprar itens de higiene básica chamaram atenção e resultou na denúncia de trabalho escravo.

Pedaço de papel que Madalena escreveu pedindo dinheiro aos vizinhos.
Madalena escrevia bilhetes pedindo dinheiro a vizinhos para comprar itens básicos de higiene – Imagem: MPT

A conhecida “escravidão contemporânea” ou “escravidão doméstica” é uma realidade nem sempre fácil de ser identificada, muito menos penalizada. Em Uberlândia, a Clínica de Enfrentamento ao Trabalho Escravo (CETE), projeto de extensão da Universidade Federal de Uberlândia, levanta a discussão do tema e esteve à frente do caso de Madalena.

Para Gustavo Marin, coordenador da CETE, aponta que as causas desse tipo de escravidão tem raízes culturais e, por isso, se torna ainda mais difícil de ser combatido. “É muito comum você escutar de pessoas acusadas de trabalho escravo doméstico se referindo à vítima usando palavras como “ela era da família”. É uma naturalização da superexploração do trabalho das mulheres no âmbito doméstico. Isso envolve uma necessidade de conscientização da sociedade para que saibam entender que isso não é digno”.

Os dados do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que desde 2020 a quantidade de pessoas resgatadas de trabalhos domésticos irregulares aumentou gradativamente no Brasil.

  • 2020: 3 resgates
  • 2021: 31 resgates
  • 2022: 35 resgates
  • 2023: 41 resgates

Os prazeres da liberdade

Enquanto o processo penal se encaminha para o fim, Madalena encara o recomeço da vida, descobrindo novos e simples prazeres diariamente, como estudar ou até lavar roupa. “Eu estou morando na minha casa agora, estou muito feliz de estar lá sozinha. Compro minhas coisinhas, minhas coisas de lavar roupa e eu mesma lavo. Está sendo bom!”

Madalena posando em frente a uma árvore florida
Após anos vivendo um mundo limitado, Madalena desfruta dos simples prazeres da liberdade – Foto: arquivo pessoal

Quando perguntada se já teve contato com a família Rigueira desde seu resgate, Mada é categórica: “Quero nem ver”. Os pensamentos não se apegam mais em quem a limitou por tanto tempo, ao invés disso, Madalena agora ousa sonhar com o futuro. “Eu tenho sonho de viajar para a Bahia, Porto Seguro. Conhecer o Brasil, conclui Godiano.”

Veja também

Acompanhe nossa programação ao vivo!