“O Brasil não tem povo, tem público”. Frase de Lima Barreto ainda cabe no Brasil 2024?

Escritor brasileiro pós-modernista, Lima Barreto viveu numa época de forte preconceito contra negros que ensaiavam assumir posição intelectual na literatura

01/07/2024 ÀS 17H53

- Atualizado Há 2 dias atrás

O recente debate presidencial da CNN nos Estados Unidos revelou ao mundo a frágil personalidade dos candidatos norte-americanos postulantes ao novo comando da maior potência econômica mundial.

Do lado republicano, as mentiras fragorosas de Donald Trump que não resistem à mais simples checagem de dados do Google.

De outro, o envelhecido e lento Joe Biden, incapaz de pegar o adversário num contragolpe de suas firulas. Débil em sua fala, de movimentos quase letárgicos.

É o que está posto ao eleitor daquela democracia, forte e soberana, que assim nos foi apresentada e pela qual nutrimos tanto fascínio.

Na França de Emmanuel Macron, de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, o presidente meteu os pés pelas mãos antecipando as eleições legislativas para 30 de junho e assiste incrédulo à ascensão da extrema direita de Marine Le Pen, sob o risco de nem sequer terminar seu mandato presidencial. Pensou um objetivo, viu o tiro sair pela culatra no resultado atingido.

Nos exemplos de Estados Unidos e França, nações ricas e erguidas sob a égide da participação popular nas mais relevantes transformações de suas sociedades, povo não é público. Povo ocupa o papel que lhe é devido, com presença marcante nas ruas e nas urnas.

E o que difere povo de público no raciocínio de Lima Barreto? O escritor afrodescendente nascido na última parte do século 19 é autor de centenas de frases antológicas, tais como “Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa”. E quando diz “… a gente inventa”, talvez sirva para sacudir nossas cacholas e nos fazer pensar como gostamos de complicar a vida, que é tão simples.

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Povo e Público, em sua frase mais célebre e que o tornou conhecido – sobretudo nas análises sociopolíticas – difere os que interagem daqueles que apenas assistem. Cabe isso ainda no Brasil contemporâneo, no Brasil da comunicação veloz e dos grandes debates amplificados pelas redes sociais?

No Brasil que faz formadores de opinião pensarem dezenas de vezes antes de escrever uma palavra que pode vir a ser mal encaixada, assim como eu o faço agora na escrita desta coluna?

Lima Barreto foi rememorado a mim pelo historiador e professor Leandro Karnal, que o cita num recente podcast que tive o prazer de ouvir sobre preconceito.

Sim, Lima Barreto foi vítima de preconceito. Sua vasta obra que atinge o ápice em “Triste Fim de Policarpo Quaresma” o fez um nome maiúsculo das letras, mas jamais o permitiu as vestes imortais da Academia Brasileira de Letras.

Talvez pela cor, quem sabe pela origem bastante modesta, quiçá pela vó escrava, ou ainda pelo tom provocativo de suas indagações: Povo ou público?

Bandeira do Brasil na Praça dos 3 Poderes, em Brasília
Bandeira do Brasil na Praça dos 3 Poderes, em Brasília. Crédito: Rogério Silva

Dia 1º de julho de 2024 marca os 30 anos do Plano Real. Os pais do controle da inflação são vários, dentre os quais Ithamar Franco, FHC, Gustavo Franco e Pérsio Arida. Este último presidiu o Banco Central e o BNDES.

Procurado por inúmeros veículos de comunicação para essa celebração de sucesso da economia brasileira – após seguidos pacotes não bem sucedidos de Sarney e Collor – Arida dá luz ao que ele enxerga como verdadeira receita de sucesso de controle da inflação: “O povo brasileiro aderiu. Foi um processo tranquilo, sem correria, sem atropelos, mas com um pacto de todos os lados, sobretudo governo e população”, sintetizou o economista.

Ele não falou de um público que assistiu a tudo, aplaudiu ou vaiou. Ele se referiu à massa de brasileiros, 30 anos atrás, como POVO.

Sou um otimista por natureza, enxergo comumente o copo meio cheio. Trinta anos depois vejo Lima Barreto desatualizado em nossa literatura cidadã, sem nunca perder minha admiração. Mas vendo que se um dia fomos PÚBLICO, isso ficou no passado.

O Brasil é puro suco de POVO.

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