‘Tribunal digital’: como mensagens no WhatsApp podem gerar reações perigosas
Caso em Uberlândia reforça como mensagens emocionais e informações não verificadas podem gerar reações rápidas e violentas
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Mensagens emocionais, áudios alarmistas e relatos sem verificação estão moldando julgamentos instantâneos em grupos de WhatsApp por todo o Brasil. Mesmo após medidas da plataforma para frear a viralização de boatos, a combinação entre conteúdo sensacionalista e redes conectadas por afinidade — como as de entregadores e motoristas — tem provocado reações rápidas, impulsivas e, por vezes, violentas, transformando a população em uma espécie de júri de um “tribunal digital”.
Esse cenário ganhou novo exemplo nesta semana, quando cerca de 20 motoboys atacaram uma casa no bairro Alvorada, em Uberlândia (MG), após a circulação de áudios e mensagens que denunciavam uma suposta agressão contra uma motorista de aplicativo. O portão foi arrombado, sacos de lixo e fezes foram arremessados no quintal, e o vídeo da ação se espalhou por toda a cidade em poucos minutos.
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Tribunal digital
O caso viralizou e acende um alerta para o impacto de julgamentos coletivos impulsionados pela velocidade da internet e pela ausência de filtros. Esse comportamento não é novidade para quem pesquisa o comportamento digital no Brasil.
De acordo com uma pesquisa da USP, cerca de 50% das fake news compartilhadas em grupos de WhatsApp de família no Brasil utilizam trechos verdadeiros ou elementos distorcidos para gerar credibilidade. Esse é um dos principais mecanismos usados para mobilizar emocionalmente os integrantes dos grupos e provocar reações impulsivas.
Além disso, estudos mostram que mensagens com conteúdo emocional e tom de denúncia se espalham com mais rapidez e intensidade nesses ambientes. Uma análise do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD) apontou que áudios alarmistas podem gerar cascatas de compartilhamento em minutos, especialmente em grupos ligados por afinidade profissional, como os de motoristas e entregadores.
Em 2020, o WhatsApp implementou limites de encaminhamento para conter esse tipo de corrente e divulgou que, com a medida, o número de mensagens altamente virais caiu 70%. Ainda assim, o aplicativo segue como um dos principais meios de disseminação de desinformação no país, segundo o Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio).
O que aconteceu
Na manhã de terça-feira (11), vizinhos registraram o momento em que motociclistas, muitos aparentemente vinculados a plataformas de entrega, se reuniram em frente a uma residência e arrombaram o portão. Em seguida, o local foi atacado com pedras, sacos de lixo e até fezes de cachorro.
O motivo, segundo relatos, seria uma vingança por uma agressão sofrida por uma condutora de transporte por aplicativo. Em áudios e mensagens compartilhadas no WhatsApp, ela afirma ter sido segurada por um passageiro enquanto o pai dele a enforcava, após uma corrida não paga. O relato provocou revolta e ação imediata.
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Mas a outra parte envolvida conta uma história bem diferente. O morador da casa nega qualquer agressão e diz ter sido surpreendido com a chegada da mulher.
Segundo ele, os dois haviam se envolvido dias antes, quando ela se ofereceu para pagar uma corrida para ele retornar para casa. Desde então, não teriam mais se falado.
Algumas semanas depois, o homem postou uma foto nas redes sociais com outra pessoa. A motorista teria reaparecido cobrando o valor da corrida e tentando entrar no imóvel. Ele alega ter sido arranhado ao impedi-la de entrar e, mesmo após pagar o valor exigido, recebeu ameaças. Meia hora depois, vieram os motoboys.
A Polícia Militar foi chamada, mas, segundo o morador, nenhuma viatura apareceu. Ao ir pessoalmente ao batalhão, foi informado de que não havia chamado registrado no sistema.
No entanto, em nota, os militares buscaram esclarecer o ocorrido: “O chamado deu entrada via tridígito 190. Foi constatado que se tratava de uma ocorrência de dano. Os autores não se encontravam mais no local, e a vítima foi orientada a procurar um posto policial para realizar o registro do evento de defesa social”, informaram.
Não é a primeira vez
Em abril de 2024, em São José dos Campos (SP), um homem teve a casa invadida e depredada após circular nos grupos de WhatsApp de motoristas de aplicativo um vídeo com acusações falsas de que ele havia assediado uma condutora. A polícia depois confirmou que o vídeo havia sido editado fora de contexto. A vítima sofreu prejuízos e precisou sair da cidade por segurança.