Como mulheres de Uberlândia driblam desafios e constroem negócios com propósito

Da cozinha à loja de confeitaria gourmet, do ateliê às vitrines do Brasil e do mundo, mulheres empreendedoras de Uberlândia protagonizam revolução econômica ancorada em resiliência e criatividade

, em Uberlândia

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As mulheres estão cada vez mais à frente dos negócios em Minas Gerais, e Uberlândia tem se destacado nesse cenário. De acordo com levantamento do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) com dados da Receita Federal, feito em março de 2025, 40,9% dos 2,1 milhões de pequenos negócios ativos (MEIs, MEs, EPPs) em Minas Gerais são liderados por mulheres, o equivalente a 897.481 empreendimentos.

Em nível nacional, a proporção é semelhante: 41,5% das micro e pequenas empresas são comandadas por mulheres, em um universo de 8,3 milhões de empreendimentos.

Produtos da Nina Soul e da Kantine Gastronomia
Par de brincos da empreendedora Nina Soul e macarrons da Kantine Gastronomia – Crédito: Reprodução Instagram/@ninasoulatelie/@kantinegastronomia

Em Uberlândia, a presença feminina entre os microempreendedores individuais (MEIs) é significativa. Dos 82.085 MEIs ativos na cidade, 36.478 são mulheres — o que representa 44,5% do total. Os dados são do Sebrae Minas, com base no Mapa das Empresas do Governo Federal. O índice é expressivo, e se aproxima da média estadual: em Minas Gerais, as mulheres representam cerca de 45% dos MEIs, com 786.989 registros de um total de 1.748.891.

Esse protagonismo crescente se reflete na pesquisa “Mulheres Empreendedoras – 3ª Edição”, realizada pelo Sebrae Minas entre os dias 10 e 17 de fevereiro de 2025 com 549 respondentes. A maioria das entrevistadas (55%) são donas de microempresas (ME) ou empresas de pequeno porte (EPP). Mais de 60% têm entre 31 e 50 anos, sete em cada 10 são mães, e mais da metade é casada. Um dado chama a atenção: 80% delas afirmam que o negócio próprio é sua principal fonte de renda.

“A pesquisa confirma a presença massiva de mulheres maduras no empreendedorismo, que têm seus negócios como fonte de autonomia e independência financeira”, destaca Marcelo de Souza e Silva, presidente do Conselho Deliberativo do Sebrae Minas.

Apesar da consolidação, os desafios permanecem. A maioria das empreendedoras (93%) começou o negócio por conta própria. Quase metade dos negócios tem entre três e cinco anos de mercado, demonstrando que essas empresas já superaram a fase inicial de sobrevivência. Ainda assim, a caminhada é marcada por obstáculos significativos.

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Entre os principais estão a falta de conhecimento em gestão (62%), a dificuldade em conciliar vida pessoal e trabalho (46%) e o acesso ao crédito (41%). “Esses dados são um alerta para a necessidade de simplificar processos burocráticos e ampliar o acesso a crédito, especialmente por meio de programas governamentais e iniciativas como o Fundo de Aval às Micro e Pequenas Empresas (Fampe), do Sebrae, que ainda são pouco conhecidos”, aponta a analista do Sebrae Minas, Tábata Moreira.

O cenário é ainda mais desafiador quando se analisa que 92% das mulheres financiam seus negócios com recursos próprios. Apenas 40% tentaram obter crédito e, entre essas, 29% enfrentaram obstáculos como excesso de garantias exigidas e desinformação sobre linhas de financiamento.

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Fabiana Queiroz, analista do Sebrae Minas, aponta cinco barreiras específicas enfrentadas pelas mulheres empreendedoras no Triângulo Mineiro:

1. Acesso a crédito e capital

2. Conciliação entre vida profissional e pessoal

3. Falta de rede de apoio e mentoria

4. Baixa formação em gestão empresarial

5. Limitações na expansão e na tecnologia

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Uma das dificuldades mais recorrentes enfrentadas pelas mulheres empreendedoras diz respeito ao acesso ao crédito e ao capital necessário para investir nos negócios. Questões estruturais e culturais ainda pesam no momento em que elas buscam financiamento.

“Mulheres enfrentam mais dificuldades para obter financiamentos e investimentos, muitas vezes devido à falta de garantias reais ou discriminação de gênero por parte de algumas instituições financeiras”, explica Fabiana.

Outro desafio relevante está na sobrecarga de funções enfrentada por muitas mulheres que empreendem e, ao mesmo tempo, assumem grande parte das responsabilidades familiares. Esse acúmulo afeta diretamente a produtividade e a saúde mental dessas empreendedoras.

“Ainda existe uma grande responsabilidade atribuída às mulheres nas tarefas domésticas e nos cuidados com a família.”

Para mitigar parte dessas dificuldades, o Sebrae lançou o programa Acredita Delas, dentro do Programa Acredita, com vigência até 31 de março de 2027. A iniciativa permite aval de 100% do valor solicitado em operações de crédito para mulheres empreendedoras, sem necessidade de garantias reais — uma medida pensada especialmente para enfrentar o gargalo do crédito.

Além disso, programas como o Sebrae Delas, o recém-lançado Move Mais (focado no B2B) e o Prêmio Mulher de Negócios integram um conjunto de ações voltadas para impulsionar negócios femininos em Uberlândia e região, promovendo capacitação, visibilidade e fortalecimento da rede de apoio.

Da perda ao recomeço

A história da Gastrônoma Luana Marques é um retrato potente da resiliência feminina. Durante anos, Luana trilhou o caminho acadêmico. Graduada em Geografia e também em Turismo e Hotelaria, com mestrado e doutorado na bagagem, atuava como professora tanto em escolas quanto em universidades.

Luana Marques, empreendedora da Kantine Gastronomia
Luana Marques seguiu o caminho da gastronomia despretenciosamente e, hoje, é proprietária da Kantine Gastronomia e símbolo de força feminina – Crédito: Luana Marques/Arquivo pessoal

Um dia, Luana levou alguns bolos caseiros para a escola onde trabalhava e ofereceu aos colegas. O sucesso foi imediato: começaram a comprar, elogiar e fazer encomendas. Como o sabor agradava, os clientes voltavam — e quem provava pela primeira vez, virava freguês.

Foi então que decidiu fazer um curso de gastronomia e durante um estágio na França sua trajetória começou a mudar.

“Conheci uma senhora francesa que virou minha amiga e me ensinou muito sobre a gastronomia local: os princípios, a delicadeza, o respeito aos ingredientes. Aquilo me tocou profundamente”, relembra.

A vida, no entanto, a surpreendeu com força. Durante o estágio, seu marido faleceu repentinamente. “Voltei para o Brasil para a missa de sétimo dia, devolvi o apartamento, empacotei minhas coisas e voltei para a França para terminar o estágio. Ao finalizar, fiquei sem tudo — sem casa, sem carro, sem meus sonhos, sem meus planos”.

Foi o momento de recomeçar. Com o apoio da família, Luana retornou para Uberlândia e começou a fazer bolos em uma pequena casinha nos fundos de um terreno. O que parecia provisório se transformou em missão: nasceu ali a Kantine Gastronomia, uma confeitaria que une técnicas francesas e sabores brasileiros. O cuidado com os detalhes, o equilíbrio dos sabores e o compromisso com a autenticidade fizeram do negócio uma referência na cidade.

“Nosso objetivo é oferecer um produto único, que não seja tão doce, mas que também não seja sem graça. É um trabalho difícil e demorado, mas é muito gratificante”, explica.

Produtos oferecidos na Kantine
Kantine tem como característica oferecer produtos da confeitaria clássica, com sabor brasileiro – Crédito: Reprodução Instagram Kantine Gastronomia/@kantinegastronomia

Hoje, Luana se dedica integralmente à Kantine e já vislumbra novos passos. Um dos seus sonhos é transformar a confeitaria em um espaço mais acolhedor para mulheres, especialmente mães. “Quero ter um ambiente onde as mães possam trabalhar com seus bebês por perto. Já vi muitas desistirem porque os horários das creches não se encaixam nas exigências do mercado”.

Com resiliência e sensibilidade, Luana Marques encontrou na gastronomia mais do que uma nova carreira: encontrou um propósito. E, com ele, inspira outras mulheres a ressignificarem suas histórias.

“Você nunca estará pronta, desapegue dessa ideia”

Nina Calcun, fundadora da marca Nina Soul, descobriu cedo o gosto pelo empreendedorismo. Ainda na infância, vendia colares de miçanga feitos à mão. Mais tarde, trilhou o caminho da ciência: formou-se em biologia, concluiu o mestrado e o doutorado em ecologia. Mas decidiu deixar a carreira acadêmica e mudar de rota.

Nina Calcun, dona do Nina Soul
Com garra e força feminina, Nina Calcun criou acessórios autênticos que ganharam destaque dentro e fora do Brasil – Crédito: Reprodução Instagram/Gisele Marquez/@gimarquezfotografia

“Você nunca estará pronta, por isso desapegue dessa necessidade de controle para começar”, aconselha. Foi com essa clareza que ela deu o primeiro passo, mesmo tomada pelo medo e pela incerteza.

Durante o doutorado, Nina descobriu estar dentro do espectro de pessoas com altas habilidades/superdotação. A mente fervilhava de ideias, mas a criatividade parecia, por vezes, tiranizá-la. Foi ao trabalhar com argila que sentiu o alívio: podia criar com as mãos aquilo que faltava no mercado — peças que expressassem mulheres como ela: arrojadas, criativas e que não se encaixavam nas caixinhas da moda.

Assim nasceu a Nina Soul. Mais do que acessórios, a marca propõe “amuletos de autenticidade”, como ela mesma define. As peças — vibrantes, coloridas, com forte inspiração na arte, na cultura brasileira e no design autoral — rompem com o minimalismo dominante e se espalharam por oito estados e cinco países, além do Brasil.

Acessórios de Nina Soul
Modelos usando brincos da Nina Soul – Crédito: Reprodução Instagram/Gisele Marquez/@gimarquezfotografia

Apesar do sucesso, Nina reconhece os desafios de empreender como mulher no Brasil. Aponta a escassez de creches, o acesso desigual ao crédito e a falta de apoio do poder público como entraves reais à autonomia feminina.

“Ser mulher me influenciou positivamente no sentido de ser multitarefa, criativa, resiliente. Mas também cobrou um preço alto: estamos sempre esgotadas, com o sentimento de culpa acionado”.

Ela lembra que, para muitas mulheres, empreender não é uma escolha, mas uma necessidade.

“A maioria das mulheres que conheço começou a empreender por pura necessidade — e eu não me excluo dessa condição. Muitas vezes o empreendedorismo já começa com a corda no pescoço”.

Hoje, Nina mantém um ponto de venda no No Jardim Café, espaço colaborativo comandado por outras mulheres empreendedoras de Uberlândia. Para ela, essa é a chave para seguir em frente: cooperação e crescimento conjunto.

“Criamos juntas esse espaço mental de empreender de forma segura, com ajuda mútua e vontade de crescer de mãos dadas.”

Caminhos para o futuro

Os números mostram que as mulheres estão transformando o cenário econômico de Minas Gerais e, especialmente, de Uberlândia. Mas também revelam que essa transformação precisa ser sustentada por políticas públicas, redes de apoio, capacitação e acesso justo a crédito.

O empreendedorismo feminino não é só uma estatística promissora. É uma resposta criativa, potente e resiliente a um mercado que ainda impõe muitas barreiras às mulheres. E é, acima de tudo, uma aposta corajosa no futuro.