Tese inédita questiona a verdade sobre Orlando Sabino, o “serial killer” do Triângulo

Pesquisadora Fernanda Nakamura analisa a cobertura jornalística que fez do andarilho Orlando Sabino o "maior serial killer do triângulo mineiro"

, em Uberlândia

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A tese de doutorado da pesquisadora Fernanda Nakamura, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), analisa a cobertura jornalística que fez o andarilho Orlando Sabino se tornar o “Monstro de Capinópolis”. O estudo retoma a história do homem que, nos anos 70, foi acusado de ser o maior “serial killer” da história do Triângulo Mineiro.

Nesta pesquisa ela utiliza uma abordagem desenvolvida pelo filósofo francês Michel Foucault, e aborda as relações entre discurso e poder na construção do que passou a ser considerado verdade a respeito do caso. 

Orlando Sabino sendo preso, policiais fazem pose após sua captura
Policiais fazem “pose” para serem fotografados ao lado de Orlando Sabino – Crédito: Janeir Parreira Reis de Lima

Orlando Sabino foi um andarilho, mais tarde diagnosticado com oligofrenia, acusado de cometer mais de 20 assassinatos no Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba e em Goiás, nos anos de 1970. No entanto, pesquisas e grandes reportagens realizadas depois dos fatos questionam esta narrativa, e apontam Sabino como um bode expiatório do regime militar. 

A trajetória de Orlando Sabino

Nascido em setembro de 1946, Orlando Sabino saiu do Paraná aos 25 anos, a pé, em direção à região do Triângulo Mineiro. Essa jornada teve início após ele presenciar o assassinato de seu pai em uma briga com o patrão da fazenda onde moravam e trabalhavam. Tempos depois, ele se tornou conhecido da polícia mineira ao ser preso por “vadiagem”, por ter furtado objetos de uma escola rural em Araxá, e ter fugido da cadeia.

Após esse ocorrido, Sabino vagou pela região do Triângulo, onde mais tarde seria acusado de cometer uma série de crimes e assassinatos.

Ao todo, mais de 20 mortes foram imputadas a Orlando Sabino, ocorridas em, ao menos, oito cidades do Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba e Goiás. Além dos assassinatos, ele também foi acusado de decapitar 19 bezerros na zona rural de Capinópolis.

Essa série de acontecimentos fez com que, em pouco tempo, fosse construída no imaginário dos moradores da região a ideia do “Monstro de Capinópolis”, posteriormente vinculada à identidade de Sabino. Moradores chegaram a afirmar que o “Monstro” possuía poderes sobrenaturais, como “desaparecer em fumaça”. A zona rural da região do Triângulo chegou a ser evacuada.

Para Pedro Popó, jornalista e autor do livro-reportagem ‘O Monstro de Capinópolis: A História de Orlando Sabino’, “Orlando Sabino matou, mas não foi a quantidade de crimes que o acusam”, explicou em entrevista ao Paranaíba Mais.

Isso porque parte dos crimes creditados a Sabino ocorreram em um curto período de tempo, em cidades relativamente distantes, o que, segundo Popó, não faria sentido, já que Sabino andava a pé pela região. Outro fato que corrobora a afirmação de Popó é a absolvição de Sabino em alguns casos, como o da morte de um casal de idosos, em março de 1972, em Capinópolis, em que foi constatado o uso de armamentos de calibre militar durante o crime.

A busca por Orlando Sabino mobilizou cerca de 300 pessoas, entre policiais militares e civis, agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e do exército. Ele foi capturado no dia 10 de março de 1972 e, devido ao seu quadro psiquiátrico, foi considerado inimputável. Em outubro do mesmo ano, Sabino foi internado no Manicômio Judiciário Jorge Vaz, em Barbacena, onde permaneceu por 38 anos, um mês e nove dias.

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A mídia e “o monstro”

A tese de doutorado de Fernanda Nakamura não se preocupou em investigar se Orlando Sabino foi ou não inocente. Seu foco foi comprovar como as notícias da época, as decisões judiciais e a compreensão da população sobre o caso fizeram com que se tornasse “verdade” que Orlando Sabino era um “monstro” e “louco”. “Eu propus analisar, a partir da metodologia proposta por Michel Foucault, como práticas discursivas constroem sujeitos e, a partir deles, regimes de verdade. Fui observar como esse sujeito era trazido na mídia e nas obras literárias”, explicou Nakamura. 

Segundo a pesquisadora da UFU, uma prova da instauração desses regimes de verdade, ou aquilo que passa a ser considerado verdade, se encontra na maneira com que Orlando Sabino é lembrado. “Quando nós falamos de Orlando Sabino, ninguém vai lembrar ou pensar que era um homem simples do Paraná, vai pensar nele como um assassino, ou pior, como um louco”, argumentou. 

O estudo partiu da leitura do livro “O diabo está lá fora”, de Julio Quinan e Miguel Patrício, e investigou matérias de revistas e jornais da época, além de livros como “Operações Antiguerrilha” e “O Monstro de Capinópolis”, de Pedro Popó.

Para Fernanda Nakamura, o discurso construído no interior de parte destes materiais retira de Orlando Sabino suas particularidades como pessoa, o reduzindo à alguém que não possui direito à fala, a um “monstro” ou a um “louco”. Segundo ela, essas produções jornalísticas partiram e reforçaram o pânico e a violência já presente no imaginário da população àquela época, a partir da série de crimes relacionados ao “Monstro de Capinópolis”. 

Fernanda Nakamura parte de uma perspectiva teórica de que a construção dos discursos mobilizam não apenas saberes, mas o saber-poder, e se relacionam diretamente com questões políticas, sociais e históricas. Ao serem mobilizados, os discursos têm a capacidade de moldar a realidade. “Naquela época, o que era dito na mídia se tornava verdade. Hoje existem discussões sobre Fake News, mas na época o que passava na TV ou nos jornais se tornavam verdades”, apontou.

Além disso, a tese aponta que os discursos mobilizados no interior destas obras consistem na instrumentalização do medo e legitimam as ações de regimes autoritários, como o regime militar,  e de instituições violentas, como o manicômio. Algo que propõe uma reflexão, a partir do seu trabalho, do papel do jornalismo e da mídia nos tempos atuais e na história. 

Bode expiatório

Pedro Popó atribui esta maneira de noticiar o caso à relação estreita que a mídia da época tinha com o regime militar. Mas não apenas isso, segundo ele “Sabino foi um bode expiatório para o regime. Isso não apenas por, possivelmente, atribuir crimes cometidos pelo Estado à Orlando Sabino (como no caso em que o casal de idosos foi assassinado com armamento militar), mas por terem se aproveitado e alimentado o pânico instaurado pelo “monstro de Capinópolis” para caçar um grupo de guerrilheiros que se escondiam no Triângulo Mineiro. 

Para Popó, esta é a explicação para o uso desproporcional de uma força de 300 homens para a caçada à Orlando Sabino, além da evacuação das pessoas da zona rural. “Os guerrilheiros se esconderam na região de Capinópolis, por isso o regime militar montou uma estrutura, criou um monstro e o medo para capturar os seus verdadeiros alvos. Foi a chamada Operação Agulha no Palheiro, ou Operação Timbete”, explicou. 

Fato é que, no caso do casal de idosos assassinados, dificilmente será possível descobrir o que de fato aconteceu. Isso pois os documentos do caso, os quais Popó teve acesso na época em que trabalhava na escrita de seu livro, desapareceram depois do processo de redemocratização. O caso têm tamanha relevância que, anos depois,  o jornalista foi chamado para relatar as suas pesquisas na Comissão da Verdade, instaurada no Triângulo Mineiro. 

Transferência do manicômio 

Orlando Sabino foi transferido do manicômio judiciário de Barbacena à uma residência terapêutica apenas em março de 2011, dois anos antes de sua morte. Nesta época, jornais noticiaram sua saída como a “liberdade do louco do Triângulo” ou “serial killer”.  Para a pesquisadora, a instituição manicômio “teve um papel importante para legitimar a verdade de um monstro louco assassino”.  Além disso serviu para que Sabino nunca tivesse voz, para que “fosse eternamente silenciado pelo estigma”. Segundo ela, esta questão serve para se pensar a maneira com que lidamos hoje em dia com pessoas com algum tipo de transtorno, mesmo que em outro contexto e em outro tempo, é importante pensarmos a respeito do “silenciamento implicado pela condição da loucura”.