Rogério Silva

Temas essenciais do mundo atual intercalados com posições humanistas a respeito de comunicação, economia, vida, política e sociedade

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Fernandas do Brasil: de Central a Eunice Paiva

Se a Academia reconhecer, ótimo. Se não, tá tudo bem. Esse patrimônio é nosso!

, em Uberlândia

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Faz tempo que não passo por aqui. A última vez foi no começo do mês passado. Queria ter mais tempo pra escrever porque isso nos ajuda a conversar conosco. E a bofetada veio revendo Fernanda, a mãe, quase 30 anos depois.

Nesse misto de Oscar com Copa do Mundo que o Brasil vive, fui visitar uma velha amiga que vi envelhecer na televisão e no cinema. Convivi mais com Fernanda Montenegro do que com a minha avó. E por isso posso gozar de intimidade ao falar dela.

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Fernanda Montenegro e Fernanda Torres Crédito: Divulgação/ Hick Duarte / Hering
Fernanda Montenegro e Fernanda Torres Crédito: Divulgação/ Hick Duarte / Hering

Central do Brasil é daquelas coisas necessárias para se experimentar na vida e reassistir de tempos em tempos tomando doses de realidade do nosso povo. Se hoje podemos desfrutar de áudios e emojis nas mensagens instantâneas que nos emburreceram na escrita, como era no passado de apenas 3 décadas quando tínhamos apenas papel, caneta e Correios?

Papel, caneta, Correios e a ignorância de não saber juntar as letras certinho na escrita a um parente distante, ao marido preso, ao filho que foi estudar longe, ao desumano que te enganou.

Fernanda, a mãe, estava lá em sua banca, na Central do Brasil, para ser o instrumento de conexão entre habitantes de um mundo nosso tão cruel e desigual chamado Brasil.

Tudo bem. É verdade que nem sempre a carta chegava ao seu destino. Mofava na gaveta do quartinho da velha senhora. Ela não era apenas a escrevedora das mensagens, mas também a justiceira que se negava a ser cúmplice das trapaças de larápios ou de vítimas que cairiam, inevitavelmente, nas mãos de seus algozes. Na maioria das vezes, companheiros violentos e agressores. Ainda tinha um viés de cambalacho, pois o engavetamento proposital das correspondências soava como “apenas metade do serviço prestado”.

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Dora e Josué são um retrato do Brasil que assiste ao trem passar, numa Central em que deveríamos ser protagonistas, não coadjuvantes

Tem uma dor de cotovelo de um Oscar que não veio. E daí? Quem melhor que nós mesmos para conhecermos a verdade tão bem desenhada na tela que expõe as vísceras do nosso cotidiano?

Se a polêmica do momento transita na órbita dos franceses que resolveram contar a história dos mexicanos e causa revolta latina, isso não nos toca. Nós contamos nossas agruras com a propriedade que só nos pertence.

Mas é a Academia, vai entender? Não sei. Fará diferença?

Fernanda, a mãe, a mesma incumbida de ser a Imaculada em outra obra belíssima do cinema brasileiro, saberá dizer a Fernanda, a filha, se isso importa ou não.

Mês que vem é março. Central do Brasil não estará em cartaz. E sim a história da família Paiva, que ainda está aqui.

-Cadê o seu marido?

-Eu não tenho marido.

-E seus filhos?

-Eu não tenho filhos, marido, cachorro. Só eu e basta.

-E quem cuida de você?

-Eu mesma.

É a sobrevivência de quem rasga os trilhos no subúrbio carioca, de Cascadura a Madureira, que se reúne na Central, de brasis diversos ignorantes e sábios, remetentes ou destinatários. No analfabetismo ou na ditadura, histórias reais que contam um Brasil de doer, mas indispensável para a nossa compreensão.

Premiado ou não. Com Oscar ou não. O reconhecimento que vale é tupiniquim.