Sapo-de-vidro: um anfíbio tão transparente que deixa o coração à mostra
Com pele translúcida, espécie revela órgãos internos e chama atenção de pesquisadores pela estratégia de defesa
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Quase imperceptíveis entre as folhas úmidas das florestas tropicais, os sapos-de-vidro revelam aquilo que normalmente não vemos. Órgãos à mostra, truques de camuflagem, descobertas científicas e táticas para evitar a extinção deste anfíbio.

A espécie é presente da América Central à Amazônia e voltou ao centro das atenções após ter exemplares recolhidos na Bolívia para impedir que fossem afetados por um projeto hidrelétrico. Novas pesquisas explicam como esses anfíbios “somem” enquanto dormem.
Encontrados em florestas da América Central e do Sul, os sapos-de-vidro chamam atenção pela pele praticamente transparente. Ao observá-los pela parte inferior, é possível ver estruturas internas, inclusive o coração batendo. Medindo entre 19 e 24 milímetros e pesando em torno de 70 a 80 gramas, esses animais habitam regiões como La Paz, Cochabamba, Santa Cruz e Chuquisaca, onde pesquisadores atuam para conservar populações ameaçadas.
O grupo resgatado recentemente foi descoberto durante uma missão no Parque Nacional Carrasco, a leste de Cochabamba. A operação buscava retirar répteis e anfíbios de áreas afetadas por um empreendimento hidrelétrico. Depois do recolhimento, os sapos foram levados ao Centro de Conservação de Anfíbios K’ayra, no Museu Alcide d’Orbigny, onde cientistas trabalham para estimular a reprodução em cativeiro e garantir a sobrevivência da espécie.
Os sapos-de-vidro, ou pererecas-de-vidro, despertam curiosidade pela biologia incomum. De acordo com biólogos especialistas em vertebrados terrestres, a transparência dos anfíbios da família Centrolenidae é resultado da epiderme extremamente fina e da ausência de pigmentos. Essas características facilitam tanto a respiração quanto a camuflagem, explica a bióloga Miriam da Cunha.
Esses anfíbios vivem sobretudo em áreas de floresta densa, como Amazônia e Mata Atlântica, e dependem das matas ciliares para se reproduzir. As pererecas-de-vidro depositam ovos em folhas suspensas sobre rios e córregos; quando os embriões se desenvolvem, os girinos caem diretamente na água. Em algumas espécies, os machos permanecem próximos aos embriões, protegendo-os de predadores e do ressecamento.
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Em Rondônia, registros confirmados incluem espécies como Hyalinobatrachium munozorum, Teratohyla midas, Vitreorana ritae e Teratohyla adenocheira. Apesar da diversidade amazônica, ainda são poucos os levantamentos que conseguem detectar esses animais tão discretos, o que reforça a necessidade de pesquisas específicas em áreas de difícil acesso, segundo Miriam da Cunha.
Nos últimos anos, porém, a ciência avançou na compreensão de como esses sapos conseguem se tornar tão transparentes. Um estudo publicado na revista Science descreve um mecanismo impressionante observado na espécie Hyalinobatrachium fleischmanni: durante o sono, ela retira cerca de 89% de seus glóbulos vermelhos da corrente sanguínea e os armazena em bolsas dentro do fígado. Esse “truque” possibilita que fiquem até três vezes mais translúcidos e praticamente desapareçam entre a vegetação.

Segundo com a bióloga, os glóbulos vermelhos absorvem luz, o que normalmente dificultaria a transparência. Ao escondê-los temporariamente, o sapo evita que predadores percebam sua silhueta. A descoberta só foi possível graças a técnicas como microscopia fotoacústica, espectroscopia óptica e análise de hemoglobina, que permitiram medir mudanças no corpo dos animais enquanto dormiam.

A descoberta chamou atenção de cientistas que investigam coagulação sanguínea. Como ressaltam pesquisadores envolvidos no estudo, aglomerados de glóbulos vermelhos poderiam formar coágulos perigosos, mas os sapos conseguem concentrá-los e redistribuí-los sem risco, algo que pode ajudar a explicar mecanismos buscados há décadas pela medicina humana.
Enquanto pesquisadores avançam no entendimento dessas espécies, o futuro dos sapos-de-vidro ainda depende de ações de conservação. A destruição das matas ciliares, a contaminação de rios e solos e a permeabilidade natural da pele – que facilita a absorção de poluentes – estão entre as principais ameaças. Por isso, centros especializados e equipes de campo têm trabalhado para proteger um dos grupos de anfíbios mais fascinantes da fauna tropical; criaturas quase invisíveis que, justamente por isso, revelam muito sobre evolução, adaptação e até sobre nós mesmos.
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